terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Come, Meu Bem



Criança pirracenta é normal. Criança pirracenta que enlouquece a mãe porque não quer comer, é normal. E tome aviãozinho na boquinha, e “come, meu bem”, e tome palmada na bunda, e nada. A criança tem valores, tem princípios, e nada no mundo a faria abrir a boca. Ou podemos entender com a visão inversa: ela não tem princípio nem valor algum, o que a torna implacavelmente convicta de que nada pode fazê-la abrir a boca para a comida. Tudo normal, até então. E por que entender o que vem a ser dessa criança como algo diferente de normal?

Sempre prestava atenção nas pessoas comendo.

Com seu pai, era uma barbárie, a boca impiedosa nem se dava ao trabalho de esconder aqueles dentes brutos torturando, humilhando que quer que estivesse a mastigar com pressa e voracidade. Era um espetáculo lamentável!
Sua mãe era mais sutil. Não, fingia ser sutil, mas aquilo não passava de desprezo. Fazia questão de deixar claro  ao que punha na boca que não passava de uma necessidade inevitável, e que não fosse isso, ligaria menos ainda para o ato de comer. As tramóias do vilão da novela pareciam mais importantes...
Desde aqueles tempos que não abria a boca para qualquer porcaria que viesse numa colher acompanhada de um ruído fanho, um “uooooonnn” frustrado, que se pretende imitar um avião, já sabia como tratar a comida. Só abria a boca para a coisa certa no momento certo, pois abrir a boca ao alimento é um gesto majestoso de receber, é o primeiro passo do processo de construção daquilo que nos constitui. Era o que comia também, e não era qualquer porcaria – pensava assim de alguma forma primitiva.
Logo após a seleção minuciosa do que receber na boca, esta tem a obrigação de guardar, proteger, acalentar e preparar a matéria. Daí a artesanal função dos dentes em trabalhar com a saliva, auxiliados pela língua que maneja de um jeito a maximizar a eficiência das investidas mandibulares. A força empregada também deve ser bem calculada afim de não cometer nenhuma atrocidade com aquilo que em breve fará parte do ser. E por que não dizer que já faz parte dele? Ora, cada pedacinho elaborado passa pela gustação, numa relação tão íntima de sensações que o sabor pode ser expressado por todo corpo - sobretudo pela face - provocando as mais variadas reações, sendo assim impossível dissociar essa alquimia de homem e comida.

Epaminondas assim cresceu, fazendo juízo das pessoas ao reparar o (pelo menos aparentemente) simples ato de comer. Chegou a perder amigos em função disso: a primeira, e última, vez que se meteu num rodízio de pizzas, entrou com todos que tinha, e saiu sem nenhum. Tomou asco até da menina que paquerava, tamanho o show de horrores que aquilo significava. Na melhor das hipóteses, comiam pelo prazer profano de se empanturrar, sem ao menos notar a beleza dos sabores de cada pizza. Ver aquilo o fazia sentir um elfo imaculado numa taberna imunda freqüentada por ogros fanfarrões. E a impressão que fazia das pessoas chegava a mexer mesmo com noções estéticas: eram todas figuras horrendas e ameaçadoras! Pessoas boas, belas e de boa índole não poderiam fazer aquilo!
E foi crescendo, selecionando suas companhias literalmente pela boca. E veio a se tornar um dos donos de uma confeitaria, cujo primeiro e, antes, único dono, reconheceu seus méritos e decidiu dividir a autoridade do estabelecimento com Epaminondas. Em suma, era um cara bem sucedido, e não se trataria de sorte; desenvolvera sua sensível capacidade de entender o “comer” como poucos no mundo desenvolvem alguma arte. Se era um dom, foi aprimorado ao máximo que um ser humano já haveria atingido.
Ao se tratar de mulheres, não fazia um tipo fisicamente muito atraente, nem era bom conquistador. Uma de suas mais traumatizantes experiências foi quando expressou seus sentimentos mais profundos por uma paixão adolescente, que evidentemente fora mal interpretado pela amada. Declarou aberta e calorosamente “eu preciso te comer!”– e nenhuma expressão poderia significar melhores intenções para com alguém. O tapa que levou doeu mais no coração que no rosto, e o marcou para sempre, não permitindo aflorar mais esse sentimento que era a coisa mais bonita que poderia sentir por alguém.
Isso não quer dizer que não teve relacionamentos amorosos; sim, teve vários. Seus dotes culinários e outros aspectos de sua personalidade atraiam algumas mulheres. Mas nenhuma delas era suficiente. Uma era sem sal; outra doce demais; gordurosa… ora enjoativas, ora lanchinhos que não cobrem o buraco do dente, enfim, nunca estava satisfeito. E todas precocemente faziam-no perder o apetite.

Eis que num dia normal, que observava como sempre desesperançoso algumas pessoas comendo suas obras na confeitaria, se deparou com algo interessante. Uma figura apática, baixa, ombros nem interessados em se manter pomposos nem caídos apenas carregando os magros braços e sendo carregados por um tronco singelo, sentou-se no balcão e pediu um docinho que poucos pediam. Era aparentemente caro para sua simplicidade, não era chamativo, grande. Era apenas um docinho que mais parecia uma barrinha de doce de amendoim. E bom, era de fato um doce feito com amendoim, mas não era tão simplesmente doce de amendoim. Epaminondas se interessou então pela audácia daquela mulher em pedir algo condizente com seu porte E não prestou atenção em mais nada enquanto ela comia seu docinho.
Ela cheirou tão sutilmente aquilo antes de por em sua boca que ninguém mais teria notado. A sintonia dos lábios com os dentes fora perfeita, tendo arrancado apenas um pedacinho suficiente para uma primeira análise, sem desperdiçar um farelo, como se tivesse pedido licença para passar numa multidão e nem sequer ter tocado ninguém.
A concentração naquilo que fazia foi concedendo cor àquela figura apática. E aquilo se tornava um espetáculo cada vez mais interessante. A danada fizera uma expressão de aprovação, e deu uma mordida com mais vontade. Aqueles lábios finos se tornavam muito atraentes à medida que ritualisticamente se abriam para receber o docinho. Agora todos os músculos de sua face trabalhavam em perfeito conjunto, conferindo-lhe, ao passo que mastigava carinhosamente, a imagem do prazer – não forçadamente, apenas prazer por estar tornando aquilo parte de si. E assim foi até terminar, fechando o ciclo com a satisfação estampada num leve e genuíno sorriso.
Epaminondas ficou perplexo. Então surgiu no caixa, dispensando a tarefa de sua empregada, tratando de não cobrar nada à jovem.
-       Aqui, pedi aquele docinho só… - estendeu uma nota de 5 reais que quitaria seu débito.
-      Minha cara, eu que devia te pagar pelo espetáculo que acabei de assistir… aliás, nada pagaria o que você fez por mim… sinta-se a vontade pra vir aqui e pedir o que quiser, confio no seu paladar! – disse acrescentando uma piscadela.
Ela não entendeu muita coisa, mas achou legal. Prometeu que voltaria no dia seguinte. E assim foi.
A moça voltara a ter aquela mesma impressão apática, e Epaminondas convidou-a a sentar-se… conversaram um pouco, agradavelmente. Ele tentou explicar sem muitos detalhes que notara tudo aquilo que se passou no dia anterior entre ela e o doce, colheu informações sobre o que fizera e comera durante o dia, e então decidiu: ofereceu um salgadinho a Catarina. E aquele mesmo espetáculo se repetiria, dessa vez complementado com a surpresa de Catarina com a sacação de Epaminondas. Como sabia que aquele salgadinho cairia tão perfeitamente? – Chegou a questioná-lo. “Entendo alguma coisa quando se trata de comer”, foi o que respondeu com um sorriso não menos agradável que aquele momento.
Aquilo soara estranhamente como um flerte, porque não parecia um. Mas era um flerte.
Os olhos de Catarina direcionados aos seus, enquanto comia, provocavam no pobre espectador a fome mais caótica que podia sentir. Assistir já não era suficiente, precisava cheirar, abocanhar, mastigar, enfim… comer. E o terror daquela experiência adolescente voltara a perturbá-lo. Queria dizer isso àquela mulher, precisava disso, mas era certo que perderia qualquer chance com ela. Tentar explicar o que isso significa pra mim? Vai soar louco demais, também não vai dar certo… que fazer? – se debatia em pensamentos.
Mas se segurou. O furor da juventude não lhe abandonara, mas já contava com alguma experiência e soube lidar com a situação, sem por tudo a perder. Assim, novos encontros se sucederam, e Catarina também nutria essa fome por Epaminondas, e os dois se entendiam em seus lanches cada vez mais freqüentes na confeitaria.

Um belo dia, Epaminondas fez um convite à moça para jantar em sua casa, o qual foi quase prontamente aceito: “Que tipo de jantar?”, “Um jantar, normal…” – Combinado!
E foi na cozinha que o casal desembestou a discutir o que fazer, e na base do improviso, os ingredientes eram postos a mesa. Salada, gracejo, ovos, desejo; um olhar, um tempero. A fome crescia à medida que o jantar se aprontava, e só havia uma forma de matá-la: pela boca. Então ali, no ambiente mais propício, se permitiram saciar a fome um do outro; comeram-se.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Sombra na Parede


Esse verão não acaba nunca? Março tá aí, mas cadê aquelas águas que o levam embora? Quando vier, é tudo de uma vez... Ah, bons tempos que ainda havia estações definidas...  faz o que, vinte e cinco anos? Por aí...

Em suma, eram os pensamentos de Pedro, catarinense que viera para o Rio de Janeiro na adolescência, e se acostumava cada vez menos com o calor progressivo dos anos. E esse verão em especial vinha prorrogando a fornalha do carnaval, como se quisesse que o êxtase permanecesse nos foliões, impedindo a volta ao trabalho.

Não que fosse o caso de Pedro. Herdeiro de imóveis, soube explorar a especulação imobiliária de Florianópolis, e vive da renda de aluguéis. Se não tem mais do que conquistou, é porque não quis. Só queria uma vida de classe média no Rio de Janeiro, e só voltava à cidade natal a negócios, que procurava manter o mais estáveis quanto fosse possível em prol de sua tranqüilidade. E estava bem tranqüilo. Acabava de chegar da rua, em seu aconchegante apartamento na Tijuca com uns vídeos e umas besteiras para curtir sua noite tranqüila de calor. Como de praxe, enclausurou a sala e ligou o ar condicionado. Uh, que beleza...

Agora vinha a parte mais difícil do dia: escolher o primeiro filme. Estava se sentindo especialmente sensível aquele dia. Nada demais, só o suficiente para ter alugado uma comédia romântica, o que não era normal. Olhou bem praquele título bonitinho, e quis se arrepender, mas lembrou que não era seu estilo, e aquela porcaria seria a primeira da noite que iria assistir. E lá estava o dvd fazendo seu papel ingrato de mostrar que é errado piratear, e é certo assistir as outras porcarias que em breve estarão nas locadoras mais próximas de sua casa, e tudo mais. Enquanto isso, Pedro pegava a cerveja na sacola plástica que trazia da rua, e reparou umas idéias de incentivo para um mundo melhor.

Bela hipocrisia... sacos plásticos poluem o mundo... eu poluo o mundo... aqueço o mundo pra esfriar minha sala... vamos brincar um pouquinho de hipocrisia então...
Resolveu desligar o ar condicionado e abrir a janela. A brisa que entrou não era tão refrescante quanto a do aparelho, mas já estava decidido, sem ar condicionado hoje – só hoje. Daí lembrara também o motivo de aquela janela estar quase sempre fechada: dava de cara pra outro prédio. Mandou tudo se danar e foi sentar em sua confortável cadeira solitária para assistir o maldito filme.

Vinte minutos de distração, foi o que conseguiu antes de suas idéias voltarem a fervilhar... Que isso, estou amolecendo... me entretendo com um filme de mulherzinha, sem ao menos ter uma aqui a meu lado para justificar essa falha de caráter... Decidiu pegar outra cerveja.

Voltando da cozinha, ao entrar na sala dava de frente para a tal janela que estava aberta, e percebeu algo intrigante. Era uma sombra na parede do prédio da frente. Melhor que isso, uma silhueta; uma bela silhueta feminina. Reparou cada curva, os ombros salientes de quem se apóia sobre o batente, previu braços magros, os cabelos não muito longos presos num jovial rabo de cavalo. Reparou que era canhota, pois apoiava o fino queixo com o punho esquerdo fechado, e um nariz não menos fino e empinado, que combinava com sua testa. Sentiu seu coração acelerando, ao passo que ia preenchendo na sombra os traços de seu rosto, seus expressivos olhos, as curvas dos lábios, busto, cintura, pernas, e de repente um som, um movimento brusco e tudo se esvaziou: uma voz aguda e profana desviara a atenção de seu sonho projetado naquela parede fria, largando o admirador de volta à solidão de sua vigília.

Precisava fazer alguma coisa, a consciência de que aquela imagem mexera consigo era um fardo, e levou a garrafa à boca. Um gole bem gelado de autocontrole. Outro mais longo. Ahhh, era o que precisava...

Na manhã seguinte, a luz incomodava um pouco os olhos de Pedro, mas não tanto quanto o torcicolo e o gosto de cabo de guarda-chuva na boca – tinha tomado muito autocontrole na noite anterior, e acabou dormindo na sala mesmo. A janela aberta o fez lembrar aquela experiência quase infantil de ter projetado tanta coisa numa sombra idiota, e decidiu fechá-la. Mas aquela imagem era insistente, mesmo com a janela fechada, surgia para o solteirão que não sabia lidar muito bem com esse tipo de situação. Ficou pensando como nunca havia reparado nenhuma vizinha com aquelas feições, já morava ali há alguns anos. Não fazia sentido.

Sem programa, Pedro saiu de seu apartamento para alugar outros filmes e curtir sua noitada solitária. Chamou o elevador, esperou o mesmo pacientemente parar no andar de cima, levar algum tempo, e depois parar no seu andar. Sinal que vinha gente no elevador. Mau sinal.

- Boa noite, dona Lúcia...! – cumprimentou a vizinha de cima, sem muito entusiasmo, porém simpático.

- Boa noite, seu Pedro! Já conhece minha sobrinha? Chegou ontem de Minas, vai passar uma semana aqui pra curtir esse final de verão! – respondeu aquela voz aguda.

Evidentemente era uma pergunta idiota, se a menina chegou ontem, e não tinham se visto até então, como poderia tê-la conhecido? Mas algo parecia familiar, e Pedro gelou ao perceber que a menina tinha aquele rabo de cavalo da sombra que vira ontem.

- Você é canhota, menina?

- Oi? Não, ora, por quê?

Tornou o olhar para dona Lúcia e completou:

- É, acho que ainda não conheço sua sobrinha! – disse esbanjando um sorriso nervoso, e arrancando risos mais espontâneos de suas companheiras de elevador. Saíra-se bem, e decidiu continuar. Fez perguntas tolas, e descobriu que era ela mesmo que estava na janela ontem a noite, apesar de que nada do que havia projetado naquela sombra condissesse com aquela menina. Não era nem canhota. Era apenas uma menininha.

No fim, foi tudo uma grande brincadeira. Mais uma brincadeira de adulto, que aquela menina não poderia brincar, e ele, por sua vez, não poderia levar adiante.
Resolveu passar uma semana em sua cidade natal, pois lá encontraria amiguinhos de sua idade...