Criança pirracenta é normal. Criança pirracenta
que enlouquece a mãe porque não quer comer, é normal. E tome aviãozinho na
boquinha, e “come, meu bem”, e tome palmada na bunda, e nada. A criança tem
valores, tem princípios, e nada no mundo a faria abrir a boca. Ou podemos
entender com a visão inversa: ela não tem princípio nem valor algum, o que a
torna implacavelmente convicta de que nada pode fazê-la abrir a boca para a
comida. Tudo normal, até então. E por que entender o que vem a ser dessa
criança como algo diferente de normal?
Sempre prestava atenção nas pessoas comendo.
Com seu pai, era uma barbárie, a boca impiedosa
nem se dava ao trabalho de esconder aqueles dentes brutos torturando,
humilhando que quer que estivesse a mastigar com pressa e voracidade. Era um
espetáculo lamentável!
Sua mãe era mais sutil. Não, fingia ser sutil,
mas aquilo não passava de desprezo. Fazia questão de deixar claro ao que punha na boca que não passava de uma
necessidade inevitável, e que não fosse isso, ligaria menos ainda para o ato de
comer. As tramóias do vilão da novela pareciam mais importantes...
Desde aqueles tempos que não abria a boca para
qualquer porcaria que viesse numa colher acompanhada de um ruído fanho, um
“uooooonnn” frustrado, que se pretende imitar um avião, já sabia como tratar a
comida. Só abria a boca para a coisa certa no momento certo, pois abrir a boca
ao alimento é um gesto majestoso de receber, é o primeiro passo do processo de
construção daquilo que nos constitui. Era o que comia também, e não era
qualquer porcaria – pensava assim de alguma forma primitiva.
Logo após a seleção minuciosa do que receber na
boca, esta tem a obrigação de guardar, proteger, acalentar e preparar a
matéria. Daí a artesanal função dos dentes em trabalhar com a saliva, auxiliados
pela língua que maneja de um jeito a maximizar a eficiência das investidas
mandibulares. A força empregada também deve ser bem calculada afim de não
cometer nenhuma atrocidade com aquilo que em breve fará parte do ser. E por que
não dizer que já faz parte dele? Ora, cada pedacinho elaborado passa pela
gustação, numa relação tão íntima de sensações que o sabor pode ser expressado
por todo corpo - sobretudo pela face - provocando as mais variadas reações,
sendo assim impossível dissociar essa alquimia de homem e comida.
Epaminondas assim cresceu, fazendo juízo das
pessoas ao reparar o (pelo menos aparentemente) simples ato de comer. Chegou a
perder amigos em função disso: a primeira, e última, vez que se meteu num
rodízio de pizzas, entrou com todos que tinha, e saiu sem nenhum. Tomou asco
até da menina que paquerava, tamanho o show de horrores que aquilo significava.
Na melhor das hipóteses, comiam pelo prazer profano de se empanturrar, sem ao
menos notar a beleza dos sabores de cada pizza. Ver aquilo o fazia sentir um
elfo imaculado numa taberna imunda freqüentada por ogros fanfarrões. E a impressão que
fazia das pessoas chegava a mexer mesmo com noções estéticas: eram todas figuras
horrendas e ameaçadoras! Pessoas boas, belas e de boa índole não poderiam fazer
aquilo!
E foi crescendo, selecionando suas companhias
literalmente pela boca. E veio a se tornar um dos donos de uma confeitaria,
cujo primeiro e, antes, único dono, reconheceu seus méritos e decidiu dividir
a autoridade do estabelecimento com Epaminondas. Em suma, era um cara bem
sucedido, e não se trataria de sorte; desenvolvera sua sensível capacidade de
entender o “comer” como poucos no mundo desenvolvem alguma arte. Se era um dom,
foi aprimorado ao máximo que um ser humano já haveria atingido.
Ao se tratar de mulheres, não fazia um tipo
fisicamente muito atraente, nem era bom conquistador. Uma de suas mais
traumatizantes experiências foi quando expressou seus sentimentos mais
profundos por uma paixão adolescente, que evidentemente fora mal interpretado pela
amada. Declarou aberta e calorosamente “eu preciso te comer!”– e nenhuma
expressão poderia significar melhores intenções para com alguém. O tapa que
levou doeu mais no coração que no rosto, e o marcou para sempre, não permitindo
aflorar mais esse sentimento que era a coisa mais bonita que poderia sentir por
alguém.
Isso não quer dizer que não teve
relacionamentos amorosos; sim, teve vários. Seus dotes culinários e outros
aspectos de sua personalidade atraiam algumas mulheres. Mas nenhuma delas era
suficiente. Uma era sem sal; outra doce demais; gordurosa… ora enjoativas, ora
lanchinhos que não cobrem o buraco do dente, enfim, nunca estava satisfeito. E
todas precocemente faziam-no perder o apetite.
Eis que num dia normal, que observava como
sempre desesperançoso algumas pessoas comendo suas obras na confeitaria, se
deparou com algo interessante. Uma figura apática, baixa, ombros nem
interessados em se manter pomposos nem caídos apenas carregando os magros
braços e sendo carregados por um tronco singelo, sentou-se no balcão e pediu um
docinho que poucos pediam. Era aparentemente caro para sua simplicidade, não
era chamativo, grande. Era apenas um docinho que mais parecia uma barrinha de
doce de amendoim. E bom, era de fato um doce feito com amendoim, mas não era
tão simplesmente doce de amendoim. Epaminondas se interessou então pela audácia
daquela mulher em pedir algo condizente com seu porte E não prestou atenção em
mais nada enquanto ela comia seu docinho.
Ela cheirou tão sutilmente aquilo antes de por
em sua boca que ninguém mais teria notado. A sintonia dos lábios com os dentes
fora perfeita, tendo arrancado apenas um pedacinho suficiente para uma primeira
análise, sem desperdiçar um farelo, como se tivesse pedido licença para passar
numa multidão e nem sequer ter tocado ninguém.
A concentração naquilo que fazia foi concedendo
cor àquela figura apática. E aquilo se tornava um espetáculo cada vez mais
interessante. A danada fizera uma expressão de aprovação, e deu uma mordida com
mais vontade. Aqueles lábios finos se tornavam muito atraentes à medida que
ritualisticamente se abriam para receber o docinho. Agora todos os músculos de
sua face trabalhavam em perfeito conjunto, conferindo-lhe, ao passo que
mastigava carinhosamente, a imagem do prazer – não forçadamente, apenas prazer
por estar tornando aquilo parte de si. E assim foi até terminar, fechando o
ciclo com a satisfação estampada num leve e genuíno sorriso.
Epaminondas ficou perplexo. Então surgiu no
caixa, dispensando a tarefa de sua empregada, tratando de não cobrar nada à
jovem.
- Aqui, pedi
aquele docinho só… - estendeu uma nota de 5 reais que quitaria seu débito.
- Minha
cara, eu que devia te pagar pelo espetáculo que acabei de assistir… aliás, nada
pagaria o que você fez por mim… sinta-se a vontade pra vir aqui e pedir o que
quiser, confio no seu paladar! – disse acrescentando uma piscadela.
Ela não entendeu muita coisa, mas achou legal.
Prometeu que voltaria no dia seguinte. E assim foi.
A moça voltara a ter aquela mesma impressão
apática, e Epaminondas convidou-a a sentar-se… conversaram um pouco,
agradavelmente. Ele tentou explicar sem muitos detalhes que notara tudo aquilo
que se passou no dia anterior entre ela e o doce, colheu informações sobre o
que fizera e comera durante o dia, e então decidiu: ofereceu um salgadinho a Catarina.
E aquele mesmo espetáculo se repetiria, dessa vez complementado com a surpresa
de Catarina com a sacação de Epaminondas. Como sabia que aquele salgadinho
cairia tão perfeitamente? – Chegou a questioná-lo. “Entendo alguma coisa quando
se trata de comer”, foi o que respondeu com um sorriso não menos agradável que
aquele momento.
Aquilo soara estranhamente como um flerte,
porque não parecia um. Mas era um flerte.
Os olhos de Catarina direcionados aos seus,
enquanto comia, provocavam no pobre espectador a fome mais caótica que podia
sentir. Assistir já não era suficiente, precisava cheirar, abocanhar, mastigar,
enfim… comer. E o terror daquela experiência adolescente voltara a perturbá-lo.
Queria dizer isso àquela mulher, precisava disso, mas era certo que perderia
qualquer chance com ela. Tentar explicar o que isso significa pra mim? Vai soar
louco demais, também não vai dar certo… que fazer? – se debatia em pensamentos.
Mas se segurou. O furor da juventude não lhe
abandonara, mas já contava com alguma experiência e soube lidar com a situação,
sem por tudo a perder. Assim, novos encontros se sucederam, e Catarina também
nutria essa fome por Epaminondas, e os dois se entendiam em seus lanches cada
vez mais freqüentes na confeitaria.
Um belo dia, Epaminondas fez um convite à moça
para jantar em sua casa, o qual foi quase prontamente aceito: “Que tipo de
jantar?”, “Um jantar, normal…” – Combinado!
E foi na cozinha que o casal desembestou a
discutir o que fazer, e na base do improviso, os ingredientes eram postos a
mesa. Salada, gracejo, ovos, desejo; um olhar, um tempero. A fome crescia à
medida que o jantar se aprontava, e só havia uma forma de matá-la: pela boca.
Então ali, no ambiente mais propício, se permitiram saciar a fome um do outro;
comeram-se.