Esse verão não
acaba nunca? Março tá aí, mas cadê aquelas águas que o levam embora? Quando
vier, é tudo de uma vez... Ah, bons tempos que ainda havia estações
definidas... faz o que, vinte e cinco
anos? Por aí...
Em suma, eram
os pensamentos de Pedro, catarinense que viera para o Rio de Janeiro na
adolescência, e se acostumava cada vez menos com o calor progressivo dos anos.
E esse verão em especial vinha prorrogando a fornalha do carnaval, como se
quisesse que o êxtase permanecesse nos foliões, impedindo a volta ao trabalho.
Não que fosse
o caso de Pedro. Herdeiro de imóveis, soube explorar a especulação imobiliária
de Florianópolis, e vive da renda de aluguéis. Se não tem mais do que conquistou, é porque
não quis. Só queria uma vida de classe média no Rio de Janeiro, e só voltava à
cidade natal a negócios, que procurava manter o mais estáveis quanto fosse
possível em prol de sua tranqüilidade. E estava bem tranqüilo. Acabava de
chegar da rua, em seu aconchegante apartamento na Tijuca com uns vídeos e umas
besteiras para curtir sua noite tranqüila de calor. Como de praxe, enclausurou
a sala e ligou o ar condicionado. Uh, que beleza...
Agora vinha a
parte mais difícil do dia: escolher o primeiro filme. Estava se sentindo
especialmente sensível aquele dia. Nada demais, só o suficiente para ter
alugado uma comédia romântica, o que não era normal. Olhou bem praquele título
bonitinho, e quis se arrepender, mas lembrou que não era seu estilo, e aquela
porcaria seria a primeira da noite que iria assistir. E lá estava o dvd fazendo
seu papel ingrato de mostrar que é errado piratear, e é certo assistir as
outras porcarias que em breve estarão nas locadoras mais próximas de sua casa,
e tudo mais. Enquanto isso, Pedro pegava a cerveja na sacola plástica que
trazia da rua, e reparou umas idéias de incentivo para um mundo melhor.
Bela
hipocrisia... sacos plásticos poluem o mundo... eu poluo o mundo... aqueço o
mundo pra esfriar minha sala... vamos brincar um pouquinho de hipocrisia
então...
Resolveu
desligar o ar condicionado e abrir a janela. A brisa que entrou não era tão
refrescante quanto a do aparelho, mas já estava decidido, sem ar condicionado
hoje – só hoje. Daí lembrara também o motivo de aquela janela estar quase
sempre fechada: dava de cara pra outro prédio. Mandou tudo se danar e foi
sentar em sua confortável cadeira solitária para assistir o maldito filme.
Vinte minutos
de distração, foi o que conseguiu antes de suas idéias voltarem a fervilhar...
Que isso, estou amolecendo... me entretendo com um filme de mulherzinha, sem ao
menos ter uma aqui a meu lado para justificar essa falha de caráter... Decidiu
pegar outra cerveja.
Voltando da
cozinha, ao entrar na sala dava de frente para a tal janela que estava aberta,
e percebeu algo intrigante. Era uma sombra na parede do prédio da frente.
Melhor que isso, uma silhueta; uma bela silhueta feminina. Reparou cada curva,
os ombros salientes de quem se apóia sobre o batente, previu braços magros, os
cabelos não muito longos presos num jovial rabo de cavalo. Reparou que era
canhota, pois apoiava o fino queixo com o punho esquerdo fechado, e um nariz
não menos fino e empinado, que combinava com sua testa. Sentiu seu coração
acelerando, ao passo que ia preenchendo na sombra os traços de seu rosto, seus
expressivos olhos, as curvas dos lábios, busto, cintura, pernas, e de repente
um som, um movimento brusco e tudo se esvaziou: uma voz aguda e profana
desviara a atenção de seu sonho projetado naquela parede fria, largando o
admirador de volta à solidão de sua vigília.
Precisava
fazer alguma coisa, a consciência de que aquela imagem mexera consigo era um
fardo, e levou a garrafa à boca. Um gole bem gelado de autocontrole. Outro mais
longo. Ahhh, era o que precisava...
Na manhã
seguinte, a luz incomodava um pouco os olhos de Pedro, mas não tanto quanto o
torcicolo e o gosto de cabo de guarda-chuva na boca – tinha tomado muito
autocontrole na noite anterior, e acabou dormindo na sala mesmo. A janela
aberta o fez lembrar aquela experiência quase infantil de ter projetado tanta
coisa numa sombra idiota, e decidiu fechá-la. Mas aquela imagem era insistente,
mesmo com a janela fechada, surgia para o solteirão que não sabia lidar muito
bem com esse tipo de situação. Ficou pensando como nunca havia reparado nenhuma
vizinha com aquelas feições, já morava ali há alguns anos. Não fazia sentido.
Sem programa,
Pedro saiu de seu apartamento para alugar outros filmes e curtir sua noitada
solitária. Chamou o elevador, esperou o mesmo pacientemente parar no andar de
cima, levar algum tempo, e depois parar no seu andar. Sinal que vinha gente no
elevador. Mau sinal.
- Boa noite,
dona Lúcia...! – cumprimentou a vizinha de cima, sem muito entusiasmo, porém
simpático.
- Boa noite,
seu Pedro! Já conhece minha sobrinha? Chegou ontem de Minas, vai passar uma
semana aqui pra curtir esse final de verão! – respondeu aquela voz aguda.
Evidentemente
era uma pergunta idiota, se a menina chegou ontem, e não tinham se visto até então, como poderia tê-la conhecido?
Mas algo parecia familiar, e Pedro gelou ao perceber que a menina tinha aquele
rabo de cavalo da sombra que vira ontem.
- Você é
canhota, menina?
- Oi? Não, ora,
por quê?
Tornou o olhar
para dona Lúcia e completou:
- É, acho que
ainda não conheço sua sobrinha! – disse esbanjando um sorriso nervoso, e
arrancando risos mais espontâneos de suas companheiras de elevador. Saíra-se
bem, e decidiu continuar. Fez perguntas tolas, e descobriu que era ela mesmo
que estava na janela ontem a noite, apesar de que nada do que havia projetado
naquela sombra condissesse com aquela menina. Não era nem canhota. Era apenas
uma menininha.
No fim, foi
tudo uma grande brincadeira. Mais uma brincadeira de adulto, que aquela menina
não poderia brincar, e ele, por sua vez, não poderia levar adiante.
Resolveu
passar uma semana em sua cidade natal, pois lá encontraria amiguinhos
de sua idade...